(O Lobo da Estepe, Herman Hesse)
-Você trazia no íntimo uma imagem da vida, uma fé, uma
exigência; estava disposto a feitos, a sofrimentos e sacrifícios, e logo aos
poucos notou que o mundo não lhe pedia nenhuma ação, nenhum sacrifício nem algo
semelhante; que a vida não é nenhum poema épico, com rasgos de heróis e coisas
parecidas, mas um salão burguês, no qual se vive inteiramente feliz com a
comida e a bebida, o café e o tricô, o jogo de cartas e a música de rádio. E
quem aspira a outra coisa e traz em si o heróico e o belo, a veneração pelos
grandes poetas ou a veneração pelos santos, não passa de um louco ou de um
Quixote. Pois bem, meu amigo, comigo também foi assim! Eu era uma jovem bem
dotada, com vocação para viver dentro de um elevado padrão, para esperar muito
de mim mesma e para realizar grandes feitos. Poderia ter um belo futuro, ser a
esposa de um rei, a amante de um revolucionário, a irmã de um gênio, a mãe de
um mártir. E a vida só me permitiu ser uma cortesã de mediano bom gosto, o que
já se vai tornando bastante difícil para mim! Foi isso o que me aconteceu.
Fiquei algum tempo desconsolada e procurei com afinco a culpa em mim mesma. A
vida, pensava eu, sempre acaba tendo razão, e se a vida se ria dos meus belos
sonhos, pensava, era porque meus sonhos tinham sido estúpidos e irracionais.
Mas isso não me valeu de nada. Mas como tivesse bons olhos e ouvidos, e, além
disso, fosse curiosa, examinei com toda a atenção a chamada vida, observei meus
vizinhos e conhecidos, pouco mais de cinqüenta pessoas e destinos, e percebi
então, Harry, que meus sonhos estavam certos, estavam mil vezes certos, assim
como os seus. Mas a vida, a realidade, não tinha razão. O fato de uma mulher da
minha classe não ter alternativa senão envelhecer de uma maneira insensata e
pobremente junto a uma máquina de escrever a serviço de um capitalista, ou
casar-se com ele por seu dinheiro ou converter-se numa espécie de meretriz, era
tão injusto quanto o de um homem como você, solitário, tímido e desesperado,
ter de recorrer à navalha de barbear para matar-se. Talvez a miséria em mim
fosse mais material e moral, e em você mais espiritual; mas o caminho era o
mesmo. Pensa que eu não pude reconhecer sua angústia diante do foxtrote, sua
repugnância pelos bares e pelos dancings e tudo o mais? Compreendia e muito bem,
como compreendia seu horror pela política, sua tristeza pelo palavreado vão e a
conduta irresponsável dos partidos e da imprensa; seu desespero diante da
guerra, as passadas e as futuras; pela maneira como hoje se pensa, se lê, se
edifica, se compõe música, se celebram as festas e se educa! Você tem razão,
Lobo da Estepe, mil vezes razão, e contudo terá de perecer. Vive demasiadamente
faminto e cheio de desejos para um mundo tão singelo, tão cômodo, que se
contenta com tão pouco; para o mundo de hoje em dia, que lhe cospe em cima,
você tem uma dimensão a mais. Quem quiser hoje viver e satisfazer-se com sua
vida, não pode ser uma pessoa assim como você e eu. Quem quiser música em vez
de balbúrdia, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro
trabalho em vez de exploração, verdadeira paixão em vez de jogo, para este não
há lugar neste belo mundo em que padecemos...